Leandro Karnal: cursos devem reforçar Filosofia
Em entrevista exclusiva, professor destaca que universidades serão cada vez menos transmissoras de conhecimento e mais produtoras de atitudes e indagações
Para o professor Leandro Karnal, “universidades compartimentadas, ensinando conteúdos fixos, que se transmitem de uma geração a outra, estão condenadas pela própria transformação técnica da sociedade”. Um dos palestrantes mais solicitados do País e famoso nas redes sociais – mantém um grupo no Facebook com 68 mil membros e sua página conta com 1,5 milhão de seguidores –, defende que os cursos superiores reforcem a Filosofia mais do que nunca, no mundo ultratécnico, ultramecanizado, extremamente industrializado e com todos os recursos de internet. “Não pode haver um programador de computadores que não tenha estudado lógica formal aristotélica, não pode haver um médico que não tenha estudado ética filosófica, não pode existir um engenheiro que não tenha estudado, por exemplo, urbanismo e outras questões fundamentais para pensar o humano.”
Sobre o seu alcance nas redes, ao lado de outros professores, Karnal acredita que há uma difusão no acesso a informações. “É difícil explicar o fenômeno. Posso recorrer a uma profecia do século 19, de Marx, que dizia que no futuro tudo se transformaria em mercadoria, inclusive o conhecimento, ou McLuhan, de que o meio e a mensagem estão fundidos – significado e significante.”
Gaúcho de São Leopoldo, mora há décadas em São Paulo, onde leciona na Universidade Estadual de Campinas. Historiador, tem especialização em História da América e doutorado em História Social, com pós-doutorado pela Unam (México) e CNRS (Paris). Participa de cursos do Pós PUCRS Online pelo terceiro ano consecutivo. É um dos convidados de cinco modalidades atuais: A Moderna Educação: Metodologia, tendências e foco no aluno; Educação Transformadora: Pedagogia, Fundamentos e Práticas; Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional; Psicologia Positiva, Ciência do Bem-Estar e Autorrealização; e Gestão de Pessoas: Carreiras, Liderança e Coaching. Nesses, ministra, respectivamente, as disciplinas A Cultura no Ambiente Educacional: da Sala de Aula ao Grupo de WhatsApp, com a professora Roselane Costella, da UFRGS; Uma Breve História da Humanidade: lições para a educação no século XXI, com Alexandre Anselmo Guilherme, da Escola de Humanidades; História da Filosofia: ser, conhecer, dizer, com Leonardo Agostini, também da Escola de Humanidades; Muito obrigado! O papel da gratidão, ao lado de Irani Argimon, da Escola de Ciências da Saúde; e Atalhos da sabedoria: maestria do ser e espiritualidade, com Wagner de Lara Machado, também da Escola de Ciências da Saúde.
Em 1996, Karnal participou da sua primeira banca de doutorado na PUCRS. Fez parte da mesa de José Alberto Baldissera, que defendeu tese em Educação. Confira mais de seu pensamento em entrevista exclusiva ao portal da PUCRS.
O senhor faz parte de cinco cursos da PUCRS. Sente diferença entre os perfis de alunos?
Os cursos produzem culturas específicas. As pessoas do Direito não são iguais às pessoas de Finanças, os alunos da área de Humanidades são muito distintos dos de outras áreas. Eu ainda não toquei, eu creio, em outras culturas, como Engenharia e Medicina, que ainda são mais específicas. Os alunos são atraídos para um curso porque tem um perfil. Eu reconheço quase imediatamente se estou numa sala com engenheiros ou filósofos.
Esses cursos se propõem a ter uma multiplicidade de perfis pelos temas que abrangem.
É um impulso universal, mas muito forte aqui na PUCRS, que eu gosto em particular, o caráter de universidade. Ela existe desde que surgiu, no ocidente europeu, na cidade de Bolonha, no século 11, como um convívio de saberes. A universidade era não um espaço para eu me tornar exclusivamente um filósofo ou um doutor em leis, mas onde eu convivia com exposições à questão estética da arte, da música, da literatura e do próprio encontro estudantil. Grandes e boas universidades, e esse curso é uma prova de que a PUCRS busca o mesmo objetivo, estão trabalhando com a ideia de dissolução de barreiras. Claro, há coisas que só o engenheiro estudará, o médico ou o filósofo. Mas eles serão muito melhores se tiverem convívio ou exposição a outras metodologias e maneiras de ver o mundo. Isso que é universidade e não uma faculdade isolada. Passei por áreas de convívio aqui. Até o ato de conversar com colegas é um ato transformador no sentido humanístico da palavra: perceber diferenças, comportamentos, distinções, idiossincrasias, para eu reforçar meu ponto de vista ou modificá-lo.
O senhor vê que esse é o caminho das universidades em um contexto em que profissões estão enfraquecidas pelas tecnologias e há uma crise de emprego?
A tendência global hoje é das universidades saírem do campo de transmissoras de conhecimento para produtoras de atitudes e indagações. Mais do que nunca tenho visto que servem e funcionam como não para a formação de uma profissão, mas de uma atitude indagadora e de um posicionamento, para usar uma palavra difícil, de uma reformuladora de epistemologias, de busca de verdade, de validação da verdade, e de métodos para produzir novas verdades. De fato, como você lembra, tudo o que me ensinaram ficará defasado. E o Yuval Harari disse, no seu último grande pronunciamento sobre educação em um congresso em Portugal, que somos a primeira geração que não sabe o que ensinar à seguinte. E eu diria assim: nós não sabemos quais as técnicas serão utilizadas, quais serão as profissões em 20 anos, mas, independentemente disso, teremos que dar resposta a questões relativas a quem eu sou, que função exerço na sociedade, quais são os valores e os modelos de busca de profissão, de modelo de ação. Universidade compartimentada, ensinando conteúdos fixos, que se transmitem de uma geração a outra, estão condenadas pela própria transformação técnica da sociedade.
Como a tecnologia pode vir como suporte para esse modelo?
Restaurando uma noção humanística de que a tecnologia é um suporte e não objetivo. Meu objetivo não é o computador, nem a rede social, nem a internet, meu objetivo é utilizar essas ferramentas, recursos e paradigmas para atingir o conhecimento e a verdade, a transformação da sociedade. Pra eu não ser possuído pelo computador, para não cumprir aquelas profecias negativas de Admirável Mundo Novo, de Huxley, ou de sociedades como a prevista por Fritz Lang, em Metrópolis, no cinema alemão do entre guerras, que serve à tecnologia. É preciso estudar muito a tecnologia, é preciso dominar linguagens tecnológicas, é preciso fazer tudo isso pra que eu dependa de tecnologias, não seja escravo delas e que não entenda que o objetivo do 4G é ser plataforma do 5G, o objetivo do 4G, do 5G ou do 50G, quando eu já estiver fora deste mundo, é sempre servir às pessoas, que se comuniquem mais, pensem mais, tenham acesso a informações mais verdadeiras. Por isso, universidade também é um centro de educação de valores e não de técnicas. Essa techne, uma expressão da filosofia grega, tem que estar a serviço de uma ação humana ou ela será não só inútil, mas perigosa.
Como o senhor vê o contexto político atual no Brasil e o seu impacto na educação de cortes de verbas no ensino superior?
Existe uma crise hoje e, naturalmente, o decréscimo na arrecadação de valores vai representar um decréscimo nos investimentos na educação. O que é perigoso nesse momento não é a oscilação quase que pendular que acompanhei ao longo de 40 anos de vida como professor, é o fato de que há um descrédito da própria educação, especialmente da educação humanística. Nós precisamos valorizar aqueles eixos que constituem o próprio conhecimento. Todo o projeto universitário e de conhecimento gira ao redor da filosofia. Ela que permite a investigação médica, física, científica, química. São os desafios propostos pelo método filosófico que se espraiam para outras áreas. São filósofos como Descartes, no seu discurso do método, e Bacon, que trabalham a ideia de como se faz a pesquisa científica, que depois vai se transformar em aparelhos médicos, remédios ou prédios mais bem construídos. A gênese, a semente de toda a educação é a filosofia, o senso crítico, a quebra de dogmas, o estímulo ao debate, ao estudo sistemático. Se eu passar a dizer que filosofia é inútil e filósofos não fazem nada, historiadores, sociólogos e antropólogos são agitadores, é porque não tenho a menor noção do que seja conhecimento, não sou de fato um intelectual ou pesquisador, sou alguém com título superior, o que hoje nem sempre quer dizer um pensador. Se eu não restauro essa crença fundamental na filosofia como primeira de todas as ideias, tenho um problema grave para resolver porque vou tornando a sociedade uma resposta técnica, de um algoritmo, que vai tornar o homem mais eficaz e mais submetido a sistemas. Eu diria que hoje no mundo ultratécnico, ultramecanizado, extremamente industrializado e com todos os recursos de internet, todos os cursos superiores têm que reforçar sua carga de filosofia, mais do que no passado, mais do que nunca. Não pode haver um programador de computadores que não tenha estudado lógica formal aristotélica, não pode haver um médico que não tenha estudado ética filosófica, não pode existir um engenheiro que não tenha estudado, por exemplo, urbanismo e outras questões fundamentais para pensar o humano. Mais do que nunca, me preocupam as verbas, que já vi serem maiores ou menores, mas hoje me preocupa muito mais a postura de agressão ao conhecimento feita por pessoas sem conhecimento.
Fotos: BRUNO TODESCHINI